20 Abril 2021
"É precisamente graças a este judeu esquecido que todos os domingos em todas as igrejas do mundo o nome de praefectus Iudaeae é repetido no Credo: 'padeceu sob Pôncio Pilatos e foi crucificado'. É ainda no eco daquele encontro, apagado de sua memória, que Pilatos é conhecido por sua resposta lapidar aos sacerdotes judeus que exigiam uma modificação na sentença sobre Cristo: Quod scripsi scripsi, 'o que escrevi, escrevi'. Frase que agora é o título de uma interessante coletânea de 'releituras literárias de Pôncio Pilatos no século XX', editada por Massimo Naro, teólogo muito atento à cultura contemporânea, que apresenta uma introdução refinada sob a insígnia de uma emblemática trilogia: 'Inocência da verdade, impotência do direito, engano da política'", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 18-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Editado por Massimo Naro,
Ciò che ho scritto ho scritto.
Le rivisitazioni letterarie di Ponzio Pilato nel Novecento,
Rubettino, pp. 239, € 18
Personagens no Evangelho. As releituras literárias do século XX: de Claudel ao exegeta Theissen, até Bulgakov. E o olhar de sua esposa Claudia Prócula N TIUS PILATUS, PRAEF ... IUDA ... E: em um bloco de calcário, que emergiu dos restos de um teatro, podiam-se ler essas letras facilmente decifráveis. Os arqueólogos de uma missão de escavação milanesa em 1961 identificaram nesta inscrição a única referência direta e contemporânea - com exceção dos atestados literários de Tácito, Flávio Josefo, Fílon e, naturalmente, os Evangelhos - de Pôncio Pilatos, praefectus da Judéia, ou seja, governador ou procurador (o título mais comum) daquela província romana.
O local da descoberta foi Cesareia Marítima, a sede daquele representante supremo do império na Palestina. Lá ele chegou em 26/27 d.C. e administrou seu poder com arrogante provocação em relação àqueles súditos relutantes. Vestígios desse obscuro oficial teriam se perdido, a não ser em manuais especializados, não tivesse sua vida se cruzado com a morte de Jesus de Nazaré. Neste ponto, não se pode deixar de mencionar o surpreendente e já famoso conto de Anatole France, O Procurador da Judéia (1902) com o diálogo entre Pilatos, já aposentado, e o ex-colega governador da Síria. “Pôncio, você se lembra de Jesus, o Nazareno, que foi crucificado, já não sei mais por qual crime? Pôncio Pilatos franziu a testa, levou a mão à testa como quem quer encontrar uma lembrança. Então, depois de alguns instantes de silêncio: Jesus - murmurou ele - Jesus o Nazareno? Não, não me lembro!”.
No entanto, é precisamente graças a este judeu esquecido que todos os domingos em todas as igrejas do mundo o nome de praefectus Iudaeae é repetido no Credo: "padeceu sob Pôncio Pilatos e foi crucificado". É ainda no eco daquele encontro, apagado de sua memória, que Pilatos é conhecido por sua resposta lapidar aos sacerdotes judeus que exigiam uma modificação na sentença sobre Cristo: Quod scripsi scripsi, "o que escrevi, escrevi".
Frase que agora é o título de uma interessante coletânea de "releituras literárias de Pôncio Pilatos no século XX", editada por Massimo Naro, teólogo muito atento à cultura contemporânea, que apresenta uma introdução refinada sob a insígnia de uma emblemática trilogia: "Inocência da verdade, impotência do direito, engano da política."
Apesar de ampla, a seleção de temas literários não pode cobrir a atração incessante exercida por esse personagem que o contemporâneo Fílon, filósofo alexandrino, não hesitava em rotular como "um homem inflexível por natureza e, além de sua arrogância, duro, capaz apenas de concussões, violência, roubo, brutalidades, tortura, execuções sem julgamento e crueldade espantosas e ilimitada”.
Muitos escritores famosos do século XX, conquistados pelo procurador romano - além disso, tratado com benevolência pelo evangelista Mateus que também coloca em cena sua primeira-dama (leia-se 27,11-26) -, atendem ao apelo de uma dezena de estudiosos que compõem, nem sempre a contento, os diversos retratos do volume. Obviamente há também o cético Anatole France, colocado em paralelo com o retumbante crente Paul Claudel que se coloca do "ponto de vista de Pilatos" condenado à dúvida e esmagado pelo peso do encontro com o "Desconhecido que estava diante de mim".
Se na história cultural do Ocidente há uma longa file de perfis de Pilatos, é necessário partir dos esboços traçados pelos evangelistas: eles são recompostos neste livro a partir da "hermenêutica narrativa" de um exegeta alemão, Gerd Theissen, que não hesitou em seguir o caminho do romance histórico (À sombra do Galileu de 1986).
Prosseguimos depois por uma trajetória percorrida ao longo dos séculos de Agostinho até o biblista Giuseppe Ricciotti, muitas vezes colocada à insígnia da apologia de Pilatos, similar ao que aconteceu com outro personagem mais trágico, Judas Iscariotes, considerado por muitos como aquele que indiretamente criou um transcendente projeto salvífico que o condenava à "missão" do traidor necessário.
Mas também não poderia faltar o olhar feminino porque, como dissemos, Mateus apresenta a anônima esposa de Pilatos, que será "batizada" pela tradição cristã com o nome de Cláudia Prócula. Por outro lado, na estrada constelada de miragens fantasiosas e fantásticas, típicas dos apócrifos cristãos, encaminhou-se Friedrich Dürrenmatt com seu Pilatus, que na realidade é o topônimo de uma montanha suíça: a lenda criada pela Legatio ad Caium reza, de fato, que após as vicissitudes mais estranhas o corpo do procurador romano teria sido escondido em um desfiladeiro de um pico perto de Lausanne ou em um lago de montanha perto de Lucerna.
O desfile continua com outros escritores, entre os quais se destaca Luigi Santucci, enquanto alguns autores italianos contemporâneos de vários calibres são reunidos em um coro final.
Como conclusão, no entanto, eu não hesitaria em colocar Mikhail Bulgakov com seu romance inacabado e póstumo (1966) O Mestre e Margarida. Seu Pilatos surge como um herói complexo, atormentado na alma e perseguido no corpo por enxaquecas e insônia, perplexo diante de um Mestre que lhe deixa vislumbrar um radical sistema alternativo de valores. No final da obra nos deparamos com um Pilatos que olha petrificado para a lua, diante dos cacos do jarro em que lavou as mãos naquele dia fatídico.
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As tramas do governador Pôncio Pilatos. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU